quarta-feira, 30 de julho de 2008

A primeira entrevista

Foi para a revista Vamos Ler! que Clarice fez seu primeiro trabalho de entrevista, e escolheu Tasso da Silveira, ex-diretor de Pan, para ser sua primeira "vítima".
A matéria sai em primeira pessoa, com um texo curto de apresentação falando sobre peculiaridades do entrevistado. Clarice não mantém distância de Tasso: ela se coloca no texto, fala de si mesma e divide com o leitor suas dúvidas.
A jornalista usa a técnica de pergunta-e-resposta, que se torna uma característica dela no decorrer de suas entrevistas. As perguntas são sempre de seu interesse e de acordo com o seu ponto de vista.
Segundo Alberto Dines, editor de Clarice em Jornal do Brasil (1960-1970), a escritora "escrevia aquilo do que gostava; seus textos reproduziam o que sua sensibilidade conseguia captar."

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Eu e Jimmy

Eu e Jimmy, mais um conto clariceano, conta com ilustrações de José Correia Moura, amigo de Clarice. Moura retrata Jimmy conforme ele é descrevido no texto, mas a imagem de sua namorada ele faz baseada em Clarice Lispector.

Eu e Jimmy centra-se na relação de um jovem casal. A narração em primeira pessoa é feita pela mulher que, ao buscar uma identidade, analisa seu comportomento frente aos homens. A jovem narradora se sente perturbada com a aproximação de Jimmy, para quem bastava que duas pessoas se gostassem para se entregarem ao amor. Apesar disto, ela cede ao fascínio que Jimmy lhe desperta.

Toques de leveza e de bom humor transparecem em meio à crítica sutil da subserviência das mulheres em seus relacionamentos afetivos. Em certo momento, a narradora se desculpa: "Que podia eu fazer, afinal? Desde pequena tinha visto e sentido a predominância das idéias dos homens sobre a das mulheres." E fala, então, sobre sua mãe:


"Mamãe antes de casar, segundo tia Emília, era um foguete, uma ruiva tempestuosa com pensamentos próprios sobre liberdade e igualdade das mulheres. O mal foi a coincidência da matéria. Houve um choque. E hoje mamãe cose e borda e canta ao piano e faz bolinhos aos sábados, tudo pontuamente com alegria."


E ainda acrescenta: "Tem idéias próprias, ainda, mas se resumem numa: a mulher deve sempre seguir o marido, como a parte acessória segue o essencial." Sobre o amor, a narradora estava apenas começando a conhecê-lo, principalmente pelo impacto da figura de um de seus professores que a leva a confessar o esforço enorme que fazia para não fechar os olhos e morrer de alegria, sem conflitos íntimos. "Era eu então absolutamente feliz. Quanto a Jimmy, continuava despenteado e com o mesmo sorriso."
Clarice cursa nesta época o curso de Direito e se perde algumas vezes, passando para os leitores o conhecimento que acabava de adquirir na faculdade. É o que ela faz, por exemplo, nesta parte onde a narradora termina o namoro com Jimmy usando Hegel:

"Disse-lhe que o primitivo equilíbrio tinha-se rompido e formara-se um novo, com outra base. É inútil dizer que Jimmy não entendeu nada, porque Hegel era mais um ponto no fim do programa e nós nunca chegamos até lá. Expliquei-lhe então que estava apaixonadíssima por D... e, numa maravilhosa inspiração (lamentei que o examinador não me ouvisse), disse-lhe que, se caso, eu não poderia unir os contraditórios, fazendo a síntese hegeliana, inútil a digressão."

A moça acreditava que Jimmy não se importaria, já que para ele a teoria vigente era a de que os homens deveriam dar vazão aos sentimentos, livrando-se da filosofia, assim como fazem os animais. "Tudo deve ser muito simples", ele dizia, "sem conflitos morais e sem complicações impostas pela civilização." E foi aproveitando deste discurso que a narradora termina o relacionamento com Jimmy, mas, para sua surpresa, resultou em uma reação tempestuosa do garoto, que a chamou até mesmo de "borboleta".
Preocupada, a moça busca os conselhos da avó, de quem ouve que os homens constroem teorias para si e outras para as mulheres, concluindo: "Minha querida, os homens são uns animais."
No fim do conto, irônica, ela diz:

"Voltávamos, assim, ao ponto de partida? Não achei que esse fosse um argumento, mas consolei-me um pouco. Dormi meio triste. Mas acordei feliz, puramente animal. Quando abri as janelas do quarto e olhei o jardim fresco e calmo aos primeiros fios de sol, tive a certeza de que não há mesmo nada a fazer senão viver. Só continuava a me intrigar a mudança de Jimmy. A teoria é tão boa!"

terça-feira, 15 de julho de 2008

O primeiro conto publicado

O primeiro conto clariceano publicado foi Triunfo, em 25/05/1940, nas páginas da revista Pan. Foram três páginas com ilustrações.
Triunfo falava sobre o intricado relacionamento de Luísa e Jorge. O ambiente doméstico surge como cenário para relato da experiência interior de Luísa, que se vê na solidão após ser abandonada por Jorge.
Luísa se identifica com muitas outras personagens da ficção de Clarice no perfil emocional e nas sensações minuciosamente expostas.

"Vai até a pia e molha o rosto. Sensação de frescura, desafogo. Está despertando. Anima-se. Trança os cabelos, prende-os para cima. Olha-se no espelho e parece uma colegial. Procura o batom, mas lembra-se a tempo de que não é mais necessário. [...] Preparou o café e tomou-o. E como nada tivesse para fazer e temesse pensar, pegou numas peças de roupa estendidas para lavagem e foi para o fundo do quintal, onde havia um grande tanque. Arregaçou as mangas e as calças do pijama e começou a esfregá-las com sabão. Assim inclinada, movendo os braços com veemência, o lábio inferior mordido no esforço, o sangue pulsando-lhe forte no corpo, surpreendeu a si mesma. Parou, desfranziu a testa e ficou olhando para frente."

Jorge vai embora pois, segundo ele, ao lado de Luísa e seus excessivos cuidados, não conseguia se concentrar para continuar seu trabalho de escritor. Com o rompimento da relação, Luísa sente se manifestar em si um comportamento que oscila entre a passividade e a lucidez da dimensão de sua natureza feminina.
Desde sua primeira publicação, as características clariceanas são evidentes: o estilo literário, o cuidado na escolha das palavras para apresentar as sensações das personagens femininas, o fluxo da consciência, o discurso centrado na mulher, a exposição de conflitos íntimos sobre os diferentes modos de amar.
E como termina Triunfo? Assim:

"Luísa terminou a tarefa. Rescendia toda ao cheiro áspero e simples do sabão. O trabalho fizera-lhe calor. Olhou a torneira grande, jorrando água límpida. Sentia um calor... Subitamente surgiu-lhe uma idéia. Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim, e a água gelada correu-lhe pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio. Aquele banho improvisado fazia-a rir de prazer. De sua banheira abrangia uma vista maravilhosa, sob um sol ardente. Um momento ficou séria, imóvel. O romance inacabado, a confissão achada. Ficou absorta, uma ruga na testa e nos cantos dos lábios. A confissão. Mas a água corria gelada sobre seu corpo e reclamava ruidosamente sua atenção. Um calor bom já circulava em suas veias. De repente, teve com um sorriso, um pensamento. Ele voltaria. Ele voltaria. Olhou em torno de si a manhã perfeita, respirando profundamente e sentindo, quase com orgulho, o coração bater cadenciado e cheio de vida. Um morno raio de sol envolveu-a. Riu. Ele voltaria, porque ela era a mais forte."

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Entre a timidez e a coragem

Mesmo sendo muito tímida, Clarice continua tentando veicular sua produção literária. É quando a menina tem quinze anos que ela e sua família mudam-se para o Rio de Janeiro. Lá, a pequena Clarice se dirige a Raimundo Magalhães Júnior, na esperança de que ele publique algum de seus contos na revista Vamos Ler!. O diálogo deu-se da seguinte maneira:

"- É pro senhor ver se publica.
Ele leu, olhou e disse:
- Você copiou isto de alguém?
- Não.
- Traduziu isto de alguém?
- Não.
- Então vou publicar."

Vamos Ler! publica, assim, dois contos clariceanos: Eu e Jimmy e Trecho. Aproveitando do amplo conhecimento da escritora mirim, Vamos Ler! conta com os serviços de Clarice também como tradutora em O Missionário (Claude Farrère) e como repórter em Uma Hora com Tasso da Silveira e Uma Visita à Casa dos Expostos.
Clarice, ainda não satisfeita, continua sua busca por publicações. Vai à procura do jornal Dom Casmurro, onde, segundo a escritora, "eles gostavam, publicavam e não pagavam."

domingo, 13 de julho de 2008

Clarice e o jornalismo brasileiro

"É curiosa esta experiência de escrever mais leve e para muitos, eu que escrevia 'minhas coisas' para poucos." (Clarice Lispector, Jornal do Brasil, 15/01/1972)

Antes mesmo de aprender a ler e escrever, Clarice Lispector já criava narrativas em parceria com sua amiga Anita. A autora fala sobre a mania de criança:
"Eu contava uma história, e quando ficava impossível de continuar, ela começava. Ela então continuava, e quando chegava em um ponto impossível, por exemplo, todos os personagens mortos, eu pegava. E dizia: 'Não estavam bem mortos.' E continuava."
Assim que se alfabetizou, com sete anos, Clarice começou a escrever contos e enviá-los para jornais, afim de ser publicada. Descobre, então, um jornal de Recife, cidade onde morava, que publica as melhores contribuições de seus pequenos leitores no chamado O Diário das Crianças, e dava prêmios aos autores mirins. Era o Diário de Pernambuco. Clarice envia seus textos, mas não obtém bons resultados. Mais tarde a escritora entende o porquê das rejeições: as histórias vencedoras relatavam fatos, as suas relatavam sensações e emoções. A autora dizia até mesmo gostar das histórias vencedoras mais do que as que ela escrevia, mas isto não foi suficiente para que Clarice mudasse o rumo de seus contos.
Clarice arrisca, aos nove anos, escrever uma peça de teatro que se chama A Pobre Menina Rica. Com vergonha de mostrá-la ao público, Clarice rasga as folhas que guardavam sua história.
Seus contos finalmente ganham força quando a autora tem catorze anos. Estes também não são publicados, mas Clarice os "empresta" ao escritor Affonso Romano de Sant'Anna, que logo notou que aquela não era uma menina qualquer.
Desde muito cedo certos detalhes ficam claros na escritora: o gosto por histórias que não terminam, o ato de fabular até nas brincadeiras infantis, a inclinação para tematizar sensações, o impulso por destruir as histórias que não lhe interessam mais e a necessidade de publicar seus textos.
Nossa Clarice se torna cada dia mais concreta.

sábado, 12 de julho de 2008

Na imprensa

"Mas por que livrar-se do que se amontoa, como em todas as casas, no fundo das gavetas?" (Clarice Lispector,Legião Estrangeira, 1964)

"Enfeitar-se é um ritual tão grave. A fazenda é um mero tecido, é matéria de coisa. É a esse estofo que com meu corpo eu dou corpo. Ah, como pode um simples pano ganhar tanta vida? Meus cabelos, hoje lavados e secados ao sol do terraço, estão da seda mais antiga. Bonita? Nem um pouco, mas mulher. Meu segredo ignorado por todos e até pelo espelho: mulher." (Clarice Lispector, Jornal do Brasil, 23/11/1968)


Um volume imenso de textos publicados em toda a imprensa brasileira: contos, traduções, crônicas, reportagens, entrevistas e até colunas femininas. É este o legado de Clarice Lispector ao mundo. Contudo, a própria Clarice dizia não ser jornalista e que nem mesmo gostava de atuar na imprensa. Seu grande sonho era, na realidade, se dedicar integralmente à literatura. Seu trabalho como jornalista era apenas para poder sustentar a si própria e a seus filhos.
Por várias vezes, entretanto, Clarice encontrou na imprensa o único meio de divulgação de seu trabalho, já que as editoras recusavam sem dó suas obras literárias. É, então, nas páginas de jornais e revistas que Clarice Lispector se comunica com um público diferente, utilizando uma linguagem simples e falando sobre as futilidades da mulher, temas tão banais da vida cotidiana, mas sempre escondida atrás de um pseudônimo.
Foi assim, por exemplo, na revista Senhor, que publicou alguns contos da jornalista - contos que, posteriormente, foram incluídos em Laços de Família (1960). Com a ajuda de um amigo jornalista, Alberto Dines, Clarice viu suas perspectivas na mídia crescerem, participando, então, diversas vezes do Diário da Noite (1960 e 1961) e do Jornal do Brasil (1967 a 1973).
Clarice Lispector fazia de tudo no mundo do jornalismo, ou melhor: quase tudo. Ela se recusava prontamente a produzir textos para editoria de polícia e notícias sociais. Clarice se interessava, na verdade, por mexer com as pessoas. A autora utilizava os espaços da imprensa feminina para instigar sua leitora a refletir sobre si mesma e sobre a vida, dirigindo a discussão para a leitura que a própria jornalista faz da mulher, da feminilidade, da moda, enfim do universo feminino.
Em Comício, os textos de Clarice somam 17, ao todo, em publicações da coluna Entre Mulheres, que ocupava uma página inteira do tablóide. Isso aconteceu em 1952. Os textos eram complexos e ricos.
Já no Correio da Manhã, a seção Feira de Utilidades, na página Correio Feminino, era publicada às quartas e sextas-feiras (de agosto de 1959 a fevereiro de 1961). As páginas eram ilustradas e os textos eram de natureza variada.
Ilka Soares entra em ação em abril de 1960 no tablóide Diário da Noite, e permanece em cena até março de 1961. Os textos eram publicados de segunda-feira a sábado, em página inteira.
É Clarice Lispector conquistando seu espaço.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Os vários mundos clariceanos

Assim como em seu trabalho ficcional, nas páginas da imprensa Clarice mantém um grande leque de variados temas, preocupações, gêneros e até mesmo algumas insubordinações. Clarice era repórter, entrevistadora, colunista, contista e cronista, ou seja, caminhou por quase todas as ruas do mundo da escrita.
Com várias caras e uma só cabeça, Clarice foi muitas. Em Comício, a escritora assinava como Tereza Quadros; no Correio da Manhã, seu pseudônimo era Helen Palmer, enquanto que no Diário da Noite a autora era a ghost writer da artista Ilka Soares.
Seu primeiro trabalho foi em A Noite, do Rio de Janeiro, em 1940, como repórter; suas últimas entrevistas foram publicadas em Fatos e Fotos/Gente, em 1977, dois meses antes de sua morte. Vemos, assim, que a vida jornalística de Clarice Lispector ultrapassou, em tempo, sua vida de ficcionista. Seu primeiro conto publicado foi Triunfo, em 1940, e apenas três anos depois Perto do Coração Selvagem, seu primeiro romance, é publicado.
Clarice vivia em constante ambiguidade, em um jogo de ser escritora ou ser jornalista e até mesmo ser ou não ser jornalista. Para ela era difícil pois doava-se tanto à profissão que se esquecia de si própria. Ela atendia a exigências do jornalismo de modo um tanto inusitado e fora de regra, sempre de forma excepcional, como atestam valiosos depoimentos de jornalistas que foram seus colegas na época.
Por dedicar-se tanto a este meio, Clarice não deixa suas aparentemente banais páginas femininas passarem despercebidas: com seu poder de atração e sedução, as mulheres se viam invadidas por ondas de mistério, prazer, revelações e descobertas quando liam as páginas de Clarice, independente de qual fosse seu pseudônimo.